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Palavra do Bispo | Homilia

Homilia

Queridos irmãos e irmãs, desde o domingo passado, e também ontem, a Liturgia da Palavra tem colocado diante de nós as passagens referentes ao pão. Falam do alimento dado por Deus ao povo de Israel que caminhava no deserto e, principalmente, do sinal realizado por Jesus em favor das multidões famintas que o seguiam, isto é, o milagre da multiplicação dos pães.

 

Hoje, mais uma vez, temos diante dos olhos este episódio, que pode ser considerado uma das cenas mais marcantes da vida de Cristo, tanto que os quatro evangelhos fazem questão de relatar, de diversos modos e visto de vários ângulos. E não haveria texto mais propício para marcar o reinício dos trabalhos acadêmicos da nossa Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI.

 

A Deus interessa o ser humano inteiro. Jesus não é só multiplicador de pães. É também, e sobretudo, multiplicador de humanidade. O pão foi apenas um sinal. No fundo, o que ele deseja é saciar nossa fome de existência e o anseio de vida em plenitude, fazendo com que cada ser humano se reconheça e reconheça aqueles que estão ao seu redor como irmãos, como próximos, e não estranhos. Não basta dar pão, é preciso também dar palavra e dar presença.

 

No mundo, não faltam pessoas solidárias que sabem partilhar o pão com quem sofre, embora precisemos de ainda mais esforços nessa direção. Já, políticas públicas de eliminação da fome e redução das desigualdades sociais, essas nem sempre os Governos realizam, tornando sempre atual a bem-aventurança: “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). 

 

Sim, ao multiplicar o pão, Jesus quer multiplicar gestos de humanização, multiplicar gente que gosta de gente, que dê de seu tempo, que empreste seus ouvidos, que dê amor; que ofereça razões da existência. Ou seja, o gesto de Jesus ilumina as decisões mais comprometedoras em defesa da vida.

 

Esse era o diferencial de Jesus de Nazaré e era por isso que as pessoas o escutavam por horas, a ponto de já não se importarem com o dia que terminava e a possibilidade de voltar para casa sem garantia do alimento, como o evangelho relata. O pão de Jesus era recheado de sentido, de verdades que fazem vibrar o coração, e sobretudo, recheado de amor.

 

Para além da partilha individual, dos gestos altruístas de dividir os bens com os pobres e de valiosos projetos sociais em favor dos necessitados, o Evangelho ensina que só Jesus tem “palavras de vida eterna” (cf. Jo 6, 68), só Ele “falava como quem tem autoridade” (cf. Mt 7, 29), e nenhum outro “fazia arder o coração pelo caminho quando explicava as Escrituras” (cf. Lc 24, 32). Sua mensagem é completa, isto é, Jesus não era só o homem do pão, mas também da palavra e da presença: pão para o corpo, para a alma e para o espírito – pão da Palavra e pão da Eucaristia, pão do céu e pão da vida eterna, conforme o discurso do capítulo sexto do Evangelho de João.

 

O sinal dos pães, operado a partir da compaixão que brota do coração do Mestre, se refere à multiplicação que acaba com as divisões, fazendo os discípulos e cada um daqueles homens e mulheres que lá estavam, ao redor de Jesus, saírem de seu próprio mundo, ampliarem os horizontes, abrirem-se ao outro, verem um irmão onde até então só se via um estranho. Ensina-lhes a lição da solidariedade: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mc 14,16). Ao fazê-los sentar-se juntos, e dar de comer do mesmo pão, apessoava cada um deles, ou seja, humanizava-os, fazendo emergir novamente o ser pessoa, a abertura recíproca, o mútuo reconhecimento da dignidade de todo ser humano.

 

Somos seres humanos, mas esse não é nosso único distintivo perante os outros viventes. Somos pessoas. Como seres vivos, temos fome de pão; como pessoas temos fome de sentido, de liberdade, de felicidade, de diálogo e reciprocidade. Cada um de nós e as pessoas ao nosso redor, todos temos fome do absoluto, fome de Deus.

 

E é exatamente por isto que as passagens que acabamos de ouvir nos remetem à vida acadêmica, por ocasião do início de um semestre letivo. De fato, os que se dedicam a ensinar e a estudar são multiplicadores de humanidade. Pensar, refletir, indagar os acontecimentos cotidianos são atributos genuinamente humanos. E mais ainda quando esse movimento leva a transformar a realidade para melhor, a impulsionar a sociedade para que seja cada vez mais feita de pessoas para pessoas, repartindo o pão com os famintos e colocando os dons a serviço.

 

Não caiamos na tentação de achar que pequenos esforços são inúteis diante de tantos desafios, porque Deus quer contar com os nossos “cinco pães e dois peixes”, com nossos talentos, ainda que tão poucos para um mundo que demanda tanto.

 

A ignorância, a intolerância, o vazio, a mediocridade, a violência, dentre outros, são o fermento estragado que não levedam a massa (isto é, não a fazem crescer), não deixam crescer o Reino de Deus. Constata-se ao mesmo tempo a fome da humanidade e a fome de humanidade! E mais, devem crescer nossos esforços por multiplicar o pão da verdade, do diálogo, da abertura, do respeito, da busca por respostas que realmente sirvam para o aqui e agora (o tempo presente), mas que apontem para a eternidade.

 

Cada um de nós é um mundo dentro de si mesmo. Estudar, portanto, é esse movimento de sair de si em direção ao mundo do outro, porque, no fundo, só se pode chegar ao totalmente Outro (Deus) quando cada um tiver capacidade de enxergar o outro diante de si, como bem salientava o francês Emmanuel Levinas. Isso aprendemos mais ainda de Jesus: sair de nós mesmos (“brilhe vossa luz diante dos homens” – Mt 5,16), que nosso diferencial sejam ações carregadas de paz, de entusiasmo, otimismo e, acima de tudo, de amor, nosso principal distintivo.

 

Queridos alunos, caros professores, não vamos sozinhos, vai conosco a graça de Deus e o seu chamado, a vocação, em resposta à qual colocamos à sua disposição, nossos braços e nossos pés, nossas capacidades e dons, para que Seu amor se multiplique no mundo, e que dos indivíduos se façam pessoas, os estranhos se reconheçam como irmãos e que Cristo seja reconhecido e possa dizer: “eu estava com fome e me destes de comer” (Mt 25, 35).

 

A vida acadêmica – especialmente a reflexão filosófica e teológica – é espaço propício onde se perscruta o conhecimento e o saber, verdadeiros tesouros “onde nem a traça, nem o caruncho destroem, nem os ladrões assaltam e roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração”. Amém!

 

 

Dom Pedro Luiz Stringhini

Mogi das Cruzes, 02 de agosto de 2021